AS RELIGIÕES TRADICIONAIS Rosângela Vegetti e Francelino Nhaga Ricas em mitos e antigas crenças, as religiões tradicionais contam, atualmente, com cerca de 100 milhões de seguidores em todo o mundo. Eram chamadas "religiões dos primitivos" Durante muito tempo, todos os povos que não seguiam uma das grandes religiões e viviam uma fé baseada em mitos e tradições recebiam uma etiqueta de identificação: primitivos. O termo quase sempre significava também: sem cultura, sem Deus, sem técnica e, portanto, pagãos, seres ainda no início da escala da evolução humana. Atualmente, tentando rever os erros que, no passado, justificaram a escravidão e, ainda hoje, alicerçam comportamentos racistas e de suposta supremacia de alguns povos sobre outros, os antropólogos e demais estudiosos apresentam novas reflexões e terminologias. Daí o termo "religiões tradicionais" e a idéia de que, na verdade, ainda que diferentes e distantes das nossas manifestações culturais, o gênero de vida de alguns povos exprime uma mesma condição humana. Assim, nossa comum humanidade não só nos torna capazes de entender essa gama tão rica de expressões de realidades, que são próprias de todos, mas também de, indo ao seu encontro, com elas nos enriquecer, descobrindo caminhos que explicam os nossos. Um exemplo de que os povos tomaram caminhos espirituais semelhantes, ao longo da história, é o costume da circuncisão. Ao contrário do que muitos pensam, não foram os judeus que o inventaram: era uma prática normal entre os egípcios há 3400 anos antes de Cristo, porém reservada aos faraós, príncipes da corte, sacerdotes e altos funcionários. Sabe-se também que Entre os judeus, tal prática era sinal de uma aliança mística que vem ligando Deus a seu povo, através dos séculos. Para os muçulmanos, a circuncisão deve ser feita entre 7 e 13 anos, mas no Alcorão, seu livro sagrado, não há nenhuma menção a respeito; ainda que a tradição diga que Maomé nascera sem o prepúcio, porque fora circunciso pelos anjos. Há também uma circuncisão ritual, praticada por alguns povos africanos, tais como os dogons, os mossis, os bambaras e os pigmeus das regiões equatoriais: uma verdadeira marca tribal. Entre os bambaras, por exemplo, a operação é coletiva e ocorre durante uma festa em que muitos meninos de uma aldeia estão reunidos diante de toda a população. No centro de um grande círculo, cada menino é operado, ouvindo uma fórmula que lembra que a dor que sofre também foi suportada por todos seus ancestrais. Como podemos ver, na grande e complexa história do ser humano, existem gestos e rituais que se repetem, como que unidos por um fio invisível e misterioso que coloca todos os povos numa incrível aventura rumo à descoberta de si mesmos e do infinito que almejam. É inegável que o mundo "primitivo" escapa às nossas categorias mentais, voltadas à lógica, à abstração dos princípios, à filosofia, enquanto se liga intimamente à vida em suas manifestações concretas, no fluir da existência e na harmonia de todo o universo material e espiritual. Por isso, para podermos entender ao menos parte da complexidade das religiões tradicionais, é preciso uma adequada posição de real interesse e abertura, livre de preconceitos, pré-julgamentos e lugares-comuns. Do mesmo modo, não se deve estabelecer confrontos e comparações, evitando conclusões e interpretações apressadas de pesquisas mal conduzidas e imprecisas. Antes, é necessário ter em mente que nelas não existem textos escritos, arquivos nem documentos, apenas narrativas, às vezes em forma de fábulas, provérbios, mitos e regras, que os mais velhos transmitem aos jovens, repetindo-lhes incansavelmente, à noite, ao redor da fogueira ou nos momentos de festa e de solenidade para a aldeia. Esses usos, cujas origens se perdem nos séculos, são a estrutura central, a alma desses povos. Em vista disso é que não se emprega mais o termo "paganismo" para designar as antigas religiões tradicionais africanas, americanas, asiáticas e dos continentes mais distantes; o próprio Concílio Vaticano II reconheceu que, de fato, essas são expressões de uma experiência religiosa em que estão presentes elementos de verdade e de graça (Nostra Aetate, 2; Ad Gentes, 9) que representam a riqueza dos povos. Finalmente, deve-se estar consciente de que tudo aquilo que aqui for exposto sobre as religiões tradicionais é apenas uma parte desse patrimônio e de que não podemos penetrar totalmente nesse mundo, porque nossa cultura ocidental não possui as chaves para abrir suas portas. Em harmonia com o cosmo A maior parte das línguas usadas pelos povos "primitivos" não dispõem de um termo equivalente a "religião", contudo, esses povos consideram-se muito religiosos e, realmente, o são. Vivem em uma profunda harmonia com todo o universo e esforçam-se para comportar-se de maneira adequada, conforme as leis morais, buscando integralmente a realidade visível e invisível. Isso significa que não existem momentos religiosos destacados de outros, considerados profanos, mas toda a vida é sustentada pelo profundo elo religioso entre os seres, o cosmo, o mundo invisível e Deus. Ritos, cerimônias, preces são algumas das modalidades através das quais o homem procura se expressar e alcançar sua própria harmonia com o todo. Mas o que importa é a atitude interior que caracteriza a vida dos povos "primitivos" e essa atitude é profundamente religiosa: cada fato cotidiano, banal ou importante, é colocado num contexto que supera a dimensão material. Sagrado e profano O bom-dia pela manhã é uma forma de agradecer a Deus que renovou o dom da vida, o encontro imprevisto com um estranho torna-se uma mensagem do céu ou dos antepassados; o bom ou mau êxito de uma caçada pode depender do sentimento de amor ou ódio que dominava o caçador naquele momento; as más disposições do coração são causas de má sorte; a trangressão das normas de vida social e moral provoca uma ruptura da harmonia do indivíduo com o universo e conseqüentes desastres: calamidades naturais que prejudicam a aldeia, doenças e mortes. Assim, qualquer iniciativa ou grande empreeendimento só podem ser conseguidos através de uma preparação espiritual: antes da caça, da semeadura, da guerra ou, talvez, em nossos dias, de uma campanha eleitoral, é pedida a ajuda de uma sacerdote-feiticeiro, realizam-se cerimônias de purificação, de súplica, de propiciação, com cantos, danças e sacrifícios rituais que congregam toda a aldeia. Trata-se de uma estrutura autenticamente religiosa, que não deve ser julgada com nossos olhos ocidentais, visto que só em nossa cultura há a separação entre o sagrado e o profano, até o ponto de considerar o sagrado como secundário ou supérfluo, não se compreendendo a unidade vital entre as duas dimensões. As religiões tradicionais - diferentes em muitas manifestações, de acordo com os respectivos povos - possuem vários pontos comuns essenciais, tendo como objeto central a vida. De fato, não é difícil entender que cada comunidade humana, vivendo da pesca às margens dos rios ou do mar, da caça nas florestas ou, simplesmente, colhendo os frutos espontâneos da natureza, esteja consciente da experiência da vida: mulheres e homens vivos entre outros seres vivos e de todas as espécies. Essa vida, essa força vital unifica o universo, acima de qualquer ser, porque ninguém dela é o dono. Segundo o antropólogo J. Goetz, "a ordem do mundo, para esses povos, é um cosmo, não uma ordem lógica ou mecânica, mas uma harmonia viva. É um todo vivo, do qual, sobretudo o ser humano, cada um em seu lugar, participa ativamente. Cada ser, que realiza exatamente sua função, nesse todo, existe, vive, tem um significado e isso é o suficiente; enquanto que o mal consiste em não participar do jogo, em não estar regularmente integrado ao todo." A "presença" da Vida O significado da "presença" da Vida no interior da vida do indivíduo, do grupo, da natureza é a principal característica das religiões tradicionais. É algo que achamos difícil de entender, porque queremos figurar essa "presença" e saber como é feita, enquanto que, para o homem religioso, basta saber que há o espírito e que Deus existe. Todo o universo tem uma alma. Um estudioso da religião dos mentawaianos (Indonésia) escreve: "Não só os homens, mas tudo o que se pode visualizar como entidade possui uma alma. Assim, acreditam que os seres vivos - gente, animais e plantas -, os objetos materiais e também os fenômenos naturais, como a queda das águas e o arco-íris, possuem uma alma. Além das almas, existem diversas espécies de espíritos que povoam o ar, o mar, a terra, a floresta e que podem morar em qualquer objeto material, como as plantas, as folhas, etc. Para os mentawaianos, as almas são uma espécie de sósia, uma cópia espiritual das coisas existentes". É inútil procurar uma definição melhor para essa força espiritual que anima a realidade, o que conta é que essa não existe em si mesma, mas está presente nos vários objetos materiais e espirituais. Toda vida é um intercâmbio, uma rede de comunicações nesse mundo de forças dinâmicas. "Viver - explica um velho africano - é comunicar-se, através da respiração, com o ar; através da comida e da água, com os reinos vegetal, mineral e animal; através do amor e do pensamento, com o mundo humano; através da oração e de seus benefícios, com Deus". Deus cria o homem e o universo Os povos "primitivos" têm uma idéia precisa de Deus, a quem reconhecem como autor da vida e convidam-nos a procurá-lo não através de requintadas elocubrações do pensamento, mas através do mundo, que é o lugar onde se pode encontrá-lo. O que dizem as religiões tradicionais a respeito de Deus? Basta fazer uma rápida incursão nas tradições sagradas de alguns povos, para perceber que há uma vasta tipologia do Ser Supremo e uma infinidade de atributos e conotações que a ele se referem. Cada povo exprime alguma coisa de diferente a respeito de Deus, segundo sua cultura, seu ambiente de vida, suas experiências existenciais; contudo, há algumas constantes que se repetem em todos, nos diversos continentes e através das diferentes épocas históricas. Numerosos estudos procuraram recolher dados e informações sobre as formas de conceber Deus nos vários povos e compará-los entre si. Percebeu-se, assim, que nas religiões tradicionais existe uma entidade diferente e superior a todas ( que podemos ser induzidos a dizer que corresponde a nossa idéia de Deus ): é o Deus celeste que conhece todas as coisas e que julga a conduta humana. É interessante notar que o Deus supremo não tem imagens e, de fato, sempre se falou que, na África, não se encontrava nenhuma forma material que representasse Deus nem se podia supor que habitasse em uma caverna, num templo ou objeto: não há nada que possa expressar a figura de Deus. Também não há templo: o eventual culto a ele reservado acontece ao ar livre, sob o céu. Os antigos habitantes do Peru tinham um único culto: reuniam-se num determinado lugar e invocavam, em voz alta, o Pai do céu, elevando os olhos para ele. Não existem sacerdotes: todos os que atuam no mundo do sagrado (adivinhos, magos, xamãs, sacerdotes -feiticeiros, etc ) realizam seu culto aos antepassados, aos espíritos e outras potências, mas não ao Ser Supremo, ao qual se deve dirigir individualmente, no fundo do coração. Em outras palavras, não se pode descrever uma experiência pessoal assim tão íntima, por isso, não há símbolos para mostrar esse Deus, apenas alguns que expressam a experiência de Deus que o ser humano pode fazer. É um Deus difícil de ser definido e, quanto mais nos aproximamos das religiões tradicionais, mais se percebe que Deus é o "tudo" e o "totalmente outro", é presença e existência, é sempre igual a si mesmo e sem arrependimento, portanto, em condições de conhecer o futuro. Raramente, é preciso dirigir-se a ele através de orações, porque "um chefe conhece o seu serviço, não cabe a você sugerir-lhe o que deve fazer". Deus criador e pai Deus criador, plenitude de vida e do bem, está no vértice de toda hierarquia espiritual; só ele dá a vida e nele não existe nenhum mal. No sofrimento e na desgraça, Deus não é chamado para ajudar; é criador e também pai providente, justo, onipresente, onisciente, generoso, onipotente. "Deus é aquele que coloca tudo à nossa disposição, mesmo sem perder o controle, assegurando o funcionamento normal do mundo; sua bondade é tão grande que, solicitado pelos homens, não hesita em refazer as coisas segundo o modo de ver dos mesmos. Sua justiça deriva de sua bondade que é absolutamente imutável e não há possibilidade de corrompê-lo com elogios ou donativos", resume J. Goetz. Deus não tem nenhum interesse em fazer mal ao homem que ele criou com amor. O mal provém das criaturas: segundo as tradições africanas, para realizar o mal, o ser humano conta com a cumplicidade dos espíritos negativos. E como nenhum espírito inferior pode prejudicar a um superior, nem raios nem serpentes e cogumelos venenosos podem, por si mesmos, fazer mal ao homem, mas só se usados por um ser superior com más intenções. A respeito disso, é muito interessante o mito dos pigmeus do Congo: "No princípio, existia Masupa ( um nome do Ser Supremo ), o criador de todas as coisas. Sem mulher nem irmãos, vivia só com seus três filhos, dois meninos e uma menina. Eram os primeiros seres humanos. Masupa era muito bom com eles e não lhes deixava faltar nada. Era chamado "pai", vivia numa cabana, falava com os filhos, mas não se deixava ver, aliás, era-lhes proibido ficar espiando. Mas a filha era muito curiosa e queria muito ver seu pai. Todos os dias, ela devia colocar um jarro com água e lenha para queimar, diante da porta do pai. Um dia, porém, escondida atrás de uma árvore, olhou para a cabana e viu um braço de seu pai, enfeitado com pulseiras, pegando o jarro. Quanta alegria para ela! Masupa, que percebeu a culpa da filha, chamou seus filhos e, em sua cólera, repreendeu a desobediência. Como castigo, decidiu partir para longe, deixando que vivessem por conta própria. Deu-lhes armas e utensílios necessários para suprir suas necessidades. Em seguida, amaldiçoou sua filha com estas palavras: 'Tu serás mulher de teus irmãos, gerarás teus filhos na dor e fará os trabalhos mais pesados' ". Segundo a tradição yoruba ( Nigéria ), o Ser Supremo, denominado Olodumaré, está escondido dos homens, mas revela-se na natureza e comunica-se através de divindades inferiores, seus mensageiros e intermediários; ama com ternura os seres humanos a ponto de "repelir as moscas daquelas vacas que não têm rabo". A existência de Deus é considerada indispensável não para explicar as coisas e a criação, mas para garantir a ordem e a continuação das mesmas. Ainda que Deus esteja "longe"e que não se recorra a ele para as questões cotidianas, sua intervenção é essencial no momento presente; portanto, a criação não é um fato distante, causa primeira da realidade, masum processo em contínua atuação. Isso explica porque alguns povos, que acreditam em Deus pai e criador, não têm mitos sobre a criação, isto é, não dispõem de nenhuma explicação para a mesma. Os mitos da criação Como explicar a obra criadora de Deus? Os pigmeus da floresta equatorial africana contam: "Ele disse: isto! eu digo: isto!; e foi feito. - Mas como? - ninguém sabe: nossos pais não o viram. Deus é Deus". Alguns índios norte-americanos explicam: "Naquela noite, ele caminhava ainda sobre as águas, imerso em seus pensamentos, e de vez em quando chorava por causa do desejo de sair-se bem em sua tarefa... Aquele que fez a terra estava sentado perto de seu cachimbo, absorto em profundos pensamentos". Entre alguns aborígenes australianos, conta-se que : "Ele fez cada homem sobre uma vasilha de casca de árvore. Ele ficou muito satisfeito com sua obra, contemplou-a longamente e começou a dançar em volta", depois, fez-lhes os cabelos e, novamente, contemplou e ficou satisfeito; finalmente, soprou sobre eles, que se moveram, e ele dançou uma terceira vez. Os yuki da Califórnia dizem que, depois da criação, Deus olhou as coisas orgulhoso e falou: "Não acreditava que poderia realizar todas essas coisas". Muitos povos possuem mitos sobre a criação que narram o fato através de imagens e símbolos tirados da vida cotidiana. Essas histórias não servem para explicar alguma coisa, além do mais, muitas vezes, nem possuem lógica, mas exprimem a consciência do homem diante da presença do mistério, a contemplação do mundo do sagrado que escapa a qualquer explicação humana e que está presente na vida. O mito é a parte mais secreta do patrimônio de um povo; é a síntese de suas crenças, de seu valor religioso, de sua idéia de Deus e de sua referência moral. Porque o mito, lembrando ao homem os elementos fundamentais de sua realidade, chama-o ao dever do bem, evoca seu lugar no universo, o significado de sua história. Dos numerosos mitos é possível sintetizar algumas características do Ser Supremo que se repetem entre os diversos povos: O Criador não exibe seu poder: está presente, mas não se impõe. "Se o homem não abusa da vida e respeita o alimento cotidiano"dizem os esquimós, não é necessária a intervenção divina, pois ao homem cabe a responsabilidade de seus atos. Aceita de bom grado a discussão com seus companheiros, respeita até o adversário ( em muitos mitos, ele está presente como origem do mal ), para ensinar que, em sua vida, o homem também deve reconhecer que não é o dono da liberdade alheia. É realmente pai e dá em abundância e sem arrependimento, mesmo quando o homem transgride as normas e peca. Segundo o mito da criação do povo winnebago ( EUA ), o Ser Supremo entrega o tabaco aos homens e diz: "Eu não poderei mais reavê-lo, a partir do momento em que lhes der isto. Mas, se espontaneamente vocês me oferecerem um pouco, aceitarei de bom grado e concerei o que me pedirem". Nesse ponto, poderíamos nos questionar sobre que diferença existe entre a narrativa bíblica da criação e os mitos das religiões tradicionais. Também para Israel Deus fez o céu e a terra e é o soberano de tudo o que foi criado, mas é um Deus que quer se revelar. O mundo dos espíritos No universo criado, o homem ocupa uma posição particular, distinta da de todas as outras coisas criadas; os mitos da criação descrevem a origem do homem de uma forma diferente: não é criado como as outras coisas, mas "plasmado", "modelado", segundo a imagem do Criador, que lhe dá alma, vida e pensamento, através de seu sopro. O homem tem uma relação especial com Deus, que o criou mas que não governa como o resto do universo, e com a criação que foi feita para ele, para abrigá-lo e assegurar-lhe a existência. Deus, mundo e ser humano estão ligados: o mundo foi criado para o encontro entre o Criador e o homem, mas também é a passagem obrigatória, às vezes, o obstáculo nas relações homem- Deus. E ele é bom e não muda, devendo o homem ser-lhe grato, contudo, nenhuma outra prece é adequada ou satisfatória; se o mal, porém, não é atribuído ao Criador, ele todavia existe e é preciso preocupar-se com todas as outras potências e entidades que agem no mundo. As preocupações do homem são assim absorvidas pela necessidade de impedir a quebra da harmonia que regula o universo, continuamente posta à prova por inúmeros seres e forças nem divinos nem humanos. Às vezes, esse cuidado torna-se predominante, a ponto de degenerar todo o sistema religioso e cultural, transformando-o numa infinidade de ritos para combater ou agradar espíritos e potências, com se tudo dependesse deles. Preces, ritos e cultos Na vida cotidiana, o homem primitivo encontra-se diante de fenômenos inexplicáveis e incontroláveis ( doenças, morte, fenômenos atmosféricos, ciclos da natureza ) e percebe sua fragilidade no contexto. Por isso, coloca a própria experiência no plano do sagrado, onde pode entender e dialogar com o que conhece: assim nascem as preces, os ritos, os cultos aos espíritos da natureza, aos antepassados, aos mortos, aos heróis do clã, etc, cada qual refletindo e dominando um problema específico da vida. É claro que o pescador deverá contar com o espírito da água, com o do antepassado, que era pescador, para que o proteja e lhe conceda uma pesca abundante, e deverá pedir a força da vida para poder apropriar-se daquela parcela de vida do peixe, do qual ele não é o dono. Trata-se de um procedimento complexo que é enriquecido com sacrifícios e normas de comportamento cuja violação conduz ao mau êxito do empreendimento. É difícil (e talvez inútil) querer definir com exatidão a natureza complexa dessas potências espirituais, seu papel no universo e o tipo de relação que existe entre eles, com os homens e com o Ser Supremo: é um procedimento teórico que não combina com a mentalidade dos povos primitivos. Para eles, a comunicação vital é indispensável para viver em harmonia, segundo a ordem da criação; não menos importante é a mediação entre homem e Ser Supremo, que pode ser conseguida só pelos antepassados e vários espíritos. Realidade e mistério A realidade concreta de cada dia está entremeada de mistérios e contrastes (noite-dia, visível-invisível, sagrado-profano, espiritual-material), assim a ativa presença na vida humana de antepassados e espíritos protetores inspira, fecunda, favorece ou estraga e impede a obra do homem, estando também na origem das alegrias e dos medos do homem primitivo. Esse é o objetivo principal da maioria dos ritos e das festas desses povos, mesmo que a conotação seja diferente, caso se trate de caçadores ou agricultores, nômades ou estáveis. As grandes etapas da vida: nascimento, puberdade, casamento e morte; os momentos sociais do trabalho: semeadura, colheita, caça, pesca: os acontecimentos extraordinários: guerra, calamidades, tudo é ocasião para festejar e salvaguardar a vida na harmonia cósmica.
O culto aos antepassados Um enfoque especial precisa ser dado aos antepassados e ao culto que lhes é reservado. Na África, particularmente, a influência dos antepassados é relevante. Esses são os elos da corrente invisível de transmissão de vida que une os pertencentes a uma comunidade étnica (clã, tribo); são eles que constituem os importantes modelos para a vida aqui na terra; são personagens-símbolo nos quais se encarnam os ideais de virtude, valor, solidariedade, responsabilidade, de continuidade de vida do grupo: mediadores privilegiados no mundo dos espíritos porque conheceram as dificuldades e necessidades humanas. Em qualquer lugar o culto aos antepassados é muito respeitado; variam os locais e as formas práticas do culto, mas o interesse fundamental é o mesmo. No cemitério, nos campos, no rio, em casa, pouco importa onde são venerados, os antepassados são aqueles que não podem ser esquecidos sem que aconteçam graves punições e, pior ainda, sem que sejam cortadas as raízes da árvore vital a que cada homem pertence. Ainda hoje, raramente um africano começa a beber ou a comer, sem primeiro jogar no chão um gole ou um pedaço como oferenda aos antepassados: é um gesto de piedade filial, de respeito, de fidelidade, que conserva a tradição e reafirma sua própria identidade. (Não estaria aí a origem do famoso "gole para o santo", tão tradicional no Brasil?) A fidelidade à própria tradição é um dever moral, juntamente com a necessária coerência de vida. Na verdade, os antepassados, com seu modo de viver, asseguraram a continuidade da estirpe e, como a vida é um dom que se recebe e que se deve transmitir, tentar escapar da própria história é como condenar-se à autodestruição. É esse espírito que conserva as cerimônias rituais, as grandes festas de iniciação, através das quais se transmite às gerações o patrimônio sagrado do povo, se escolhem os nomes pessoais como portadores de bençãos e favores espirituais, se consideram a retidão moral e a observância do sistema de normas e tabus que regem a sociedade. E o futuro? As mudanças culturais que estão ocorrendo em todos os continentes sob o influxo da tecnologia ocidental e a divulgação dos conhecimentos científicos tendem a desmantelar esse complexo e fascinante mundo religioso que, diante das novas realidades, apresenta diversos pontos fracos. Os povos primitivos estão no limiar de uma total transformação: seu mundo espiritual não pode responder às novas exigências culturais, porém, sem esse sustento espiritual tais povos perdem sua identidade e sua alma. Infelizmente, precisou-se chegar a esse momento da destruição de antigas culturas e religiões para descobrir a riqueza e a humanidade de seus valores, bem como para reconhecer que Deus, pai amoroso de todos os homens, deu a seus filhos tantas experiências para que possamos encontrá-lo.
Canto dos akan (Guiné) O sol claro resplandece e arde sobre nós, a lua surge em seu esplendor; mas o olho de Deus é mais do que tudo isso: nada para ele está escondido.
Nome de Deus na língua de alguns povos africanos
Disponível em: https://www.pimenet.org.br/mundoemissao/religtradicionais2.htm 13/02/2011 |
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